Vol. 10 (Supl.2)
- 49º CC do HUPE
1. Mestre; Médica do Departamento de Pediatria do HUPE/UERJ.
2. Doutora; Médica do Departamento de Genética, UFRGS; Serviço de Genética Médica, Hospital de Clínicas de Porto Alegre/RS.
INTRODUÇÃO
O desenvolvimento da genética na prática médica tem provocado impacto na compreensão, no diagnóstico e mesmo no tratamento de diversas condições pediátricas nas últimas décadas. Tecnologias recentes têm sido disponibilizadas no campo terapêutico das doenças lisossômicas (DL), condições estas consideradas uma causa importante de doença pediátrica neurodegenerativa e um modelo único para condução de pesquisas que podem levar ao desenvolvimento e monitoramento de terapias restauradoras ou modificadoras do curso natural da doença1.
As mucopolissacaridoses (MPS) são responsáveis por cerca de 34% das DL2, e apesar de evoluírem com importantes manifestações na infância, e os familiares destes pacientes buscarem auxílio pediátrico desde o início das manifestações clínicas, não são estes profissionais que realizam o diagnóstico conclusivo e sim os geneticistas clínicos. Infelizmente, também se observa, no Brasil, um atraso de cerca de 4,8 anos entre o início dos sinais e sintomas de MPS e o estabelecimento propriamente do diagnóstico, diferente de outros países, nos quais o diagnóstico é mais precoce. Tais fatos, provavelmente, refletem a ausência de conhecimento dos profissionais de saúde a respeito das MPS, bem como as características operacionais do nosso sistema público de saúde (visto que os testes diagnósticos não são ofertados pelo SUS)3, associados a um desconhecimento de estratégias que vêm facilitando o diagnóstico das MPS.
Além das considerações acima traçadas e devido ao fato de que tratamento medicamentoso específico tem sido disponibilizado para algumas das MPS, objetivamos, neste trabalho, descrever alAno
guns aspectos referentes às DL e realizar uma revisão sucinta acerca das manifestações clínicas e diagnóstico laboratorial das MPS e os benefícios obtidos até o momento com a terapia de reposição enzimática (TRE) para as MPS I, II e VI.
Julgamos importante que profissionais de saúde, especialmente pediatras, tornem-se familiarizados com estas condições, considerando os desafios impostos na condução diagnóstica e no complexo manuseio terapêutico das mesmas.
Aspectos referentes às doenças lisossômicas
O termo 'doenças lisossômicas' (DL) foi introduzido por Hers (1965)4 ao explicar a patogênese da doença de Pompe glicogenose tipo II, DL causada pela atividade deficiente da enzima α-1,4-glicosidase localizada nos lisossomos. As DL representam um grupo de, pelo menos, 50 entidades genéticas distintas e raras1, mas, quando somadas, respondem por uma incidência conjunta estimada de 1:7.700 nascimentos2.
Em um estudo realizado no Laboratório de Referência para Erros Inatos do Metabolismo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (LREIM-HCPA), centro de referência para o diagnóstico EIM no Brasil, as DL corresponderam a 59,8% dos EIM diagnosticados5.
Os lisossomos, descritos por De Duve e Wattiaux em 1966, são organelas citoplasmáticas delimitadas por membranas próprias, que não contêm DNA ou ribossomos e se encontram presentes em todas as células eucarióticas6,7. São observados em abundância em células do sistema retículo-endotelial de todo o organismo: monócitos (sangue), macrófagos (pulmão), e macrófagos diferenciados nos respectivos tecidos como serosa, osso, medula óssea, cavidades, células de Kupfer (fígado), histiócitos (tecido conjuntivo), células gliais (sistema nervoso central), e distribuídos, também, na medula óssea, baço, linfonodos, cavidades, osso, dentre outros.
Os lisossomos possuem mais de 50 hidrolases ácidas, enzimas com atividade proteica particular, envolvidas na degradação de macromoléculas das células, incluindo proteínas, carboidratos, ácidos nucleicos e lipídios. Estas estruturas, atualmente, são definidas mais especificamente por suas propriedades funcionais do que estruturais, visto pertencerem a um componente altamente dinâmico de um sistema endocítico8.
A maioria das DL é causada pela presença de mutações patogênicas nas hidrolases ácidas, ou, excepcionalmente, de atividades não lisossomais que estão envolvidas na biogênese da maturação proteica. Tais enzimas são sintetizadas no retículo endoplasmático rugoso, transportadas para o complexo de Golgi, onde recebem resíduos manose-6-fosfato (marcadores) que permitem o direcionamento das mesmas até o lisossomo. Algumas enzimas lisossômicas podem ser secretadas e endocitadas por outras células, fenômeno que é a base para algumas estratégias de tratamento deste grupo de doenças como a terapia de reposição enzimática (TRE) e o transplante de medula óssea (TMO)7,9.
Apesar de cada uma das DL resultar de mutações em um gene diferente e, consequentemente, em uma enzima específica, todas as DL compartilham uma característica comum, que é o acúmulo de substratos normalmente degradados nos lisossomos, causando disfunção celular e orgânica. De acordo com o tipo de substrato acumulado, as DL podem ser agrupadas em amplas categorias, incluindo as mucopolissacaridoses, as esfingolipidoses, glicoproteinoses e outras DL10. Estas categorias mostram similaridades clínicas que incluem: anormalidades ósseas, organomegalia, disfunção do sistema nervoso central em algumas formas e dismorfias craniofaciais, levando, em sua maioria, a comprometimento sistêmico grave e diminuição importante da expectativa de vida.
Do ponto de vista fisiopatológico, nas DL, existem muitos componentes que levam a uma cascata de eventos patogênicos, muitos deles de caráter inflamatório, dentre estes citamos, por exemplo, a liberação de citocinas por macrófagos ativados pelo acúmulo de glicosilceramida na Doença de Gaucher. Processos inflamatórios que culminam na degeneração articular e óssea das MPS, bem como os que levam à ativação glial são contribuintes da neurodegeneração descrita nas gangliosidoses e lipofuscinoses. A regulação defeituosa dos níveis de cálcio intracelular adicionalmente tem sido invocada como importante fator patogenético em modelos animais afetados pela forma neuronopática da Doença de Gaucher, Sandhoff e Niemann-Pick8,11.
A Figura 1 mostra o fenótipo das DL a partir do descrito por Kacher e Futerman (2006)12 e adaptado pelos autores.

Figura 1. Fenótipo de doença lisossômica adaptado de Kacher & Fu- terman, 200612.
MUCOPOLISSACARIDOSES MPS
As MPS são doenças genéticas raras causadas pela deficiência de diferentes enzimas lisossômicas específicas que agem sequencialmente na degradação de glicosaminoglicanos (GAGs), componentes da membrana celular e da matriz extracelular. A atividade deficiente de cada uma dessas enzimas associa-se a um tipo específico de DL, coletivamente chamados de MPS. São descritas, até o momento, ao menos, 11 defeitos enzimáticos que causam sete tipos diferentes de MPS, levando ao acúmulo de GAGs sulfatados como o heparan sulfato, dermatan sulfato, queratan sulfato e o condroitina sulfato, de acordo com o tipo e/ou a deficiência enzimática observada (Tab.1)13.

Não existem estudos relativos à incidência das MPS no Brasil. O único dado disponível é o número de casos diagnosticados pelo Laboratório de Erros Inatos do Metabolismo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (LREIM-HCPA) desde 1982 (ano de início das suas atividades) até junho de 2010: 892 casos; os tipos mais frequentes, segundo este levantamento, são as MPS I, II e VI, para as quais já existe tratamento através da TRE. O diagnóstico de MPS, no Brasil, está centralizado no LREIM-HCPA, por meio das atividades da Rede MPS Brasil, projeto financiado pelo CNPq e sediado no Serviço de Genética Médica do HCPA (SGM/HCPA)14. Por se tratar de doenças raras, de caráter multissistêmico e evolutivo, recomenda-se que o diagnóstico e o acompanhamento dos pacientes com MPS seja realizado por equipe multidisciplinar.
Abordaremos, subsequentemente, as MPS I, II e VI, condições para as quais se dispõe, atualmente, de tratamento através da terapia de reposição enzimática.
MPS I
A MPS I é uma DL de herança autossômica recessiva, causada pela atividade deficiente da enzima α-iduronidase (IDUA). A IDUA é responsável pela clivagem dos resíduos de ácido idurônico dos glicosaminoglicanos (GAGs) heparan e dermatan sulfato. Na MPS I, ocorre o acúmulo destes GAGs parcialmente degradados no interior dos lisossomos e o aumento da sua excreção da urina. A incidência mundial desta doença é estimada em aproximadamente 1/100.0002. Estudos epidemiológicos sobre a MPS I, no Brasil, são escassos. Pesquisa conduzida recentemente pelas autoras mostrou prevalência muito baixa da condição provavelmente associada ao subdiagnóstico e à ocorrência das formas mais graves da MPSI por predomínio da faixa etária pediátrica na amostra obtida. Segundo este estudo, haveria, ao menos, 68 pacientes vivos no Brasil e a prevalência mínima da doença, no Brasil, seria da ordem de 1/2.700.00015.
A MPS I está associada a três formas clássicas, que diferem entre si com base na presença de comprometimento neurológico, na velocidade de progressão da doença e na gravidade do acometimento dos órgãos-alvo (sistema nervoso central, ossos, articulações, vias aéreas superiores e inferiores, coração e córnea, principalmente): Forma grave (Síndrome de Hurler) - os pacientes costumam ser diagnosticados até os 2 anos de idade e apresentam atraso no desenvolvimento e estatura máxima de 110 cm. A maioria das crianças apresenta história de infecção de vias aéreas, otites e de rinorreia. O óbito ocorre, geralmente, durante a primeira década de vida por insuficiência cardíaca ou respiratória. Na forma intermediária ou moderada (Síndrome de Hurler-Scheie), as manifestações se dão entre 3 a 8 anos de idade e apresentam, em sua maioria, inteligência normal e sobrevida até a idade adulta com baixa estatura final. E, na forma atenuada (Síndrome de Scheie), a sintomatologia destes costuma se iniciar entre os 5 e 15 anos de idade com curso clínico dominado por problemas ortopédicos. Esta classificação, embora ainda bastante utilizada, é um tanto arbitrária, uma vez que existem pacientes que apresentam quadros mistos cujas manifestações das diferentes formas mencionadas se sobrepõem13. A observação de atraso no desenvolvimento como primeiro sinal referido por pais de pacientes com MPS, especialmente nos casos de MPSI, deve chamar a atenção do pediatra para a possibilidade deste diagnóstico3.
MPS II
A MPS II ou Síndrome de Hunter é causada pela deficiência da enzima lisossômica iduronato-2-sulfatase (IDS) e tem incidência aproximada de 0,31 a 0,71 por 100 mil nascidos vivos16,17. Por apresentar herança ligada ao X, manifesta-se quase que exclusivamente em meninos. A MPSII também é uma doença crônica e progressiva, porém com grande variabilidade de manifestações clínicas, e especial envolvimento do sistema nervoso central em alguns casos. Constitui-se em forma grave ou neuronopata e forma leve ou não neuronopata18. A forma grave da MPSII compromete cerca de ⅔ dos pacientes, se caracteriza por manifestações precoces que consistem em maior comprometimento somático e neurológico. Estudo conduzido em pacientes brasileiros mostrou que as seguintes características podem estar associadas com a forma grave: diagnóstico bioquímico mais precoce, níveis urinários maiores de GAGs, atraso no desenvolvimento da linguagem, distúrbio de comportamento, performance escolar regular e retardo mental19. As alterações esqueléticas consistem de malformações esqueléticas e vertebrais e rigidez articular. Comprometimento respiratório restritivo e obstrutivo com ocorrência de apneia do sono são observados, além dos quadros de pneumonias, sinusites e otites de repetição com perda auditiva mista. Hepatoesplenomegalia, hérnias umbilicais e inguinais também são frequentes. Alterações em pele como mancha mongólica, hirsutismo e lesões papulares
(peebles) são comuns, e estas últimas podem desaparecer espontaneamente. Envolvimento cardiológico - miocárdico e valvar manifestam-se comumente e é a principal causa de morte destes pacientes18. Observou-se que a idade média do óbito dos pacientes com MPSII, no Brasil, era significativamente menor naqueles com envolvimento cognitivo comparado com os pacientes sem envolvimento cognitivo19.
Na forma atenuada ou "não neuronopata", observa-se pouco ou nenhum envolvimento do sistema nervoso central, preservação da inteligência e boa expectativa de vida. No entanto, muitas vezes, observam-se pacientes com formas intermediárias com maior ou menor comprometimento dos diversos órgãos, não existindo, até o momento, um escore de gravidade destes pacientes, além disto muitas complicações são subdiagnosticadas e subtratadas comprometendo ainda mais a evolução clínica destes pacientes8,19.
MPS VI
A MPS VI ou Síndrome de Maroteaux-Lamy é uma doença autossômica recessiva, causada pela deficiência da enzima n-acetilgalactosamina-4 sulfatase, ou arilsulfatase B (ARSB). Possui incidência estimada de 0,23 por 100 mil nascidos vivos16, sendo que, no Brasil, dados preliminares indicam ser esta incidência maior5. Os pacientes com MPS VI assemelham-se aos pacientes com MPS I, mas, geralmente, possuem inteligência normal. Também apresentam uma variabilidade ampla de sintomas multissistêmicos, de curso crônico e progressivo, sendo acometidos, principalmente, o sistema esquelético e cardio-pulmonar, a córnea, a pele, o fígado, o baço, o cérebro e as meninges. As deformidades esqueléticas se caracterizam por tronco curto, gibosidade tóraco-lombar, alargamento de punhos e contraturas articulares e levam a uma baixa estatura significativa (Fig.2). Opacificação de córnea, papiledema e atrofia ótica são observados em estágios mais avançados, além da hipoacusia condutiva e neurossensorial. O envolvimento respiratório se dá por comprometimento obstrutivo e restritivo das vias aéreas superiores e inferiores: pescoço curto, mandíbula hipoplásica, tórax encurtado, traqueobroncomalácea, dentre outros, contribuindo com os problemas respiratórios. A apneia obstrutiva do sono é uma complicação frequente também na MPS VI. O envolvimento cardíaco miocárdico e valvar é responsável por grande parte da morbimortalidade, ocorrendo o óbito na 2ª ou 3ª década de vida20.

Figura 2. a Macrocrania, aumento do diâmetro ântero-posterior craniano, hirsutismo e manchas mongólicas, hérnia umbilical e gibosidade em paciente com MPSVI aos 15 meses de vida; b Ressonância magnética da coluna dorsal e lombar: disgenesia da porção anterior dos corpos vertebrais de D11 e D12 e L1. Cifose angular e acentuada lordose lombar.
DIAGNÓSTICO LABORATORIAL DAS MPS
Até o momento, o diagnóstico dos pacientes depende, em primeiro lugar, da ocorrência da suspeita clínica e, posteriormente, do acesso aos métodos de diagnóstico laboratorial.
Frente à suspeita clínica de uma MPS, deve-se realizar a análise dos GAGs urinários (por dosagem de GAGs e/ou cromatografia/eletroforese na urina), que, habitualmente, se encontram elevados nos pacientes com MPS. De acordo com os tipos de GAGs que se encontram excretados em excesso na urina (dermatan-sulfato, heparan-sulfato, queratan-sulfato, por exemplo), procede-se à medida das atividades enzimáticas específicas em sangue ou fibroblastos. A demonstração da redução significativa da atividade enzimática seja em plasma, fibroblasto ou papel-filtro é necessária para o estabelecimento do diagnóstico bioquímico do tipo específico da MPS, sendo sempre recomendável a confirmação, em plasma, leucócitos ou fibroblastos, dos resultados positivos baseados na análise em papel-filtro. Orienta-se sempre tentar proceder à identificação das mutações patogênicas nos casos identificados, tendo em vista sua utilidade para diagnóstico pré-natal ou mesmo pré-implantacional. O diagnóstico pré-natal também é possível de ser realizado, seja pela dosagem de GAGs no líquido amniótico, pela medida da atividade enzimática específica em vilosidades coriônicas ou amniócitos, ou pela análise de DNA. Recomenda-se, sempre, a utilização de mais de um método para confirmação dos resultados.
ASPECTOS TERAPÊUTICOS
Não existe tratamento curativo para as MPS. As opções terapêuticas disponíveis incluem intervenções realizadas no nível do fenótipo clínico tais como cirurgias para correção de hérnias e adenoides, suporte ventilatório noturno, etc ou no nível da proteína mutante transplante de células hematopoiéticas e TRE.
Importante sinalizar, frente ao comprometimento multissistêmico das MPS, que tais pacientes demandam acompanhamento de suporte multidisciplinar regular habitualmente composto por pediatras, neurologistas, neurocirurgiões, cirurgiões, ortopedistas, pneumologistas e fisioterapeutas, dentre outros. O impacto causado pela gravidade e cronicidade da doença também tem demandado suporte psicológico e social ao paciente e suas famílias.
Em se tratando de doenças geneticamente determinadas autossômica recessiva em todos os tipos de MPS, exceto MPS II que é ligada ao cromossomo X e, portanto, com risco de recorrência familiar, o papel do geneticista deve ser reforçado quanto à provisão do aconselhamento genético e possibilidade de oferta de métodos diagnósticos pré-natais.
TRANSPLANTE DE MEDULA ÓSSEA TMO
Em termos de tratamento específico das MPS, é importante sinalizar que o TMO ou de células do cordão umbilical permite que células do doador produtoras de enzima migrem para o cérebro e outros órgãos provendo terapia enzimática permanente com ganho somático, melhora da função neurocognitiva e da qualidade de vida, além de prolongar a sobrevivência, especialmente quando realizado de forma precoce21. O TMO é considerado o tratamento de eleição para a forma grave da MPSI (Hurler) em pacientes menores de dois anos de idade, que ainda não tenham comprometimento neurológico. Quando feito precocemente, tem mostrado benefícios quanto à melhora ou estabilização do comprometimento neurocognitivo, de manifestações somáticas (diminuição da hepatoesplenomegalia, melhora da sintomatologia obstrutiva respiratória, da capacidade respiratória e da função miocárdica, dentre outros) e no aumento da expectativa de vida da MPSI7,22. No entanto, o diagnóstico ainda tardio da condição e, consequentemente, o baixo índice de resultados clínicos satisfatórios, as dificuldades de obtenção de doador compatível e os riscos associados ao transplante em si - morbidade, mortalidade e falha no enxerto e doença do enxerto contra o hospedeiro - têm se tornado desafiadores para a implementação desta terapêutica neste grupo de pacientes7.
TERAPIA DE REPOSIÇÃO ENZIMÁTICA (TRE)
A base para o desenvolvimento da terapia de reposição enzimática (TER) se deu a partir das observações iniciais de De Duve e Wattiaux nos anos 60 e por experimentos subsequentes de Neufeld e Muenzer6,13. De forma objetiva, tais experimentos mostraram a possibilidade de reposição da enzima defeituosa por meio da infusão de enzima normal, a captação das enzimas lisossômicas por outras células por mecanismos envolvendo receptores manose-6-fosfato localizados nas membranas plasmáticas e a observação de que quantidades pequenas destas enzimas seriam suficientes para prevenir o desenvolvimento da doença7.
As primeiras experiências e ensaios clínicos se deram para a Doença de Gaucher (DL decorrente da deficiência de glicocerebrosidase), que culminaram com a disponibilidade comercial desde 1991, inicialmente da enzima alglucerase de origem placentária humana, e, subsequentemente, com a formulação recombinante humana, da enzima imiglucerase, produzida em larga escala a partir de células cultivadas de ovário de hamster chinês7. O Quadro 1 mostra outras enzimas atualmente disponíveis para o tratamento da doença de Gaucher e outras DL.

A experiência paradigmática com o tratamento da Doença de Gaucher tipo I, para a qual a TRE tem mostrado importantes benefícios clínicos, juntamente com a aprovação da lei dos medicamentos órfãos nos Estados Unidos, permitiram, ao longo das duas últimas décadas, o desenvolvimento de TRE para outras DL, dentre elas as MPS. Tais drogas adquiriram a denominação de medicamentos órfãos visto estarem voltados para o tratamento de doenças raras (segundo critérios europeus, incidência inferior a 5 por 10 mil habitantes); dessa forma, foram obtidos benefícios governamentais para o seu desenvolvimento (protocolos especiais de investigação e aprovação mais rápidos que os usuais) e comercialização (como impostos diferenciados, exclusividade de mercado, dentre outros)23.
A TRE consiste na aplicação intravenosa de forma recombinante da enzima que se encontra deficiente no paciente, e frente a incomuns, mas possíveis eventos adversos, recomenda-se que seja de uso intra-hospitalar.
Atualmente estão sendo disponibilizados fármacos para o tratamento das MPS I, II e VI, além da doença de Gaucher, doença de Fabry e doença de Pompe, conforme mostra o Quadro 1. Um estudo clínico fase III (estudo randomizado, duplo-cego, controlado por placebo, que tem o objetivo de avaliar a eficácia e a segurança) utilizando-se enzima recombinante está sendo conduzido para a MPSIVA ou síndrome de Morquio.
Os regimes terapêuticos disponibilizados para uso comercial por TRE para as MPSI, II e VI, a partir do uso da laronidase, idursulfase e galsulfase, respectivamente, têm mostrado alguns importantes efeitos positivos. Dentre estes, salientamos, a partir de breve revisão da literatura, que os benefícios clínicos auferidos se deram, de forma significativa, na redução do volume de fígado e baço, na função pulmonar e na mobilidade articular dos pacientes tratados para estas condições24,25,26. Melhora na qualidade de vida aferida por instrumentos formais foi relatada para estudos conduzidos para MPSI e MPSII24,25.
Importante salientar que a TRE não atravessa a barreira hematoencefálica e, portanto, não previne as manifestações neurológicas das MPS. Neste sentido, estudos estão sendo conduzidos para a reposição enzimática intratecal para a MPSII. Outras modalidades terapêuticas estão sob estudo para as DL, dentre estas, a utilização de drogas que aumentem o código de leitura das mutações nonsense e possibilitem o aumento da atividade enzimática para o tratamento da MPSI27.
Não existe ainda consenso na literatura acerca da idade ideal para o início da TRE nem sua indicação formal para todos os pacientes (Schwartz
et al. 2008), devendo seu uso ser analisado, caso a caso, por profissionais experientes e em centros especializados. Recentemente foi publicado um guia brasileiro com orientações específicas quanto à TRE para MPSI, II e VI que pode ser útil na condução do tratamento (Giugliani
et al. 2010). Os potenciais benefícios, riscos e custos devem ser explicitados à família, assim como as tomadas de decisão quanto ao início e suspensão do uso da TRE. Critérios de suspensão do medicamento devem levar em conta a resposta terapêutica do paciente ao tratamento; entretanto, aqueles não se encontram bem delineados até o momento.
Os medicamentos disponibilizados para TRE para as MPS são de alto custo e não se encontram incluídos no componente especializado de assistência farmacêutica do Ministério da Saúde, tendo o acesso a estes se dado, no momento atual, predominantemente, por via judicial (Schwartz, IV, comunicação pessoal, 2011), possivelmente devido não somente ao alto custo destes medicamentos, mas, também, pelo fato que, de acordo com a literatura analisada, o grau de evidências de efetividade do tratamento pela TRE para as MPS estejam ainda em fase de delineamento15. O estabelecimento de protocolos clínicos e diretrizes para o uso da TRE serão necessários, tendo em vista a racionalização do uso e sua sustentabilidade.
Outras opções terapêuticas ainda não se encontram disponíveis para este grupo de doenças, o que torna ainda mais desafiador e necessário o diagnóstico precoce, tendo em vista o estabelecimento de cuidados de suporte e aconselhamento genético, acoplados ao uso racional da TRE.
CONCLUSÕES
As DL são um grupo de doenças genéticas complexas e multissistêmicas das quais as MPS têm sido as mais frequentemente diagnosticadas. Apesar de raras, o reconhecimento destas, o mais cedo possível, deve ser estimulado tendo em vista as possibilidades de ofertar melhores cuidados para o paciente e a provisão de aconselhamento genético como oportunidade única para o planejamento familiar. Os cuidados envolvem não somente o tratamento sintomático multidisciplinar, mas também torna possível oferecer de forma premente, terapias específicas (como a terapia de reposição enzimática ou o transplante de medula óssea) que têm mostrado efeito positivo em algumas manifestações clínicas e poderão intervir de forma positiva na história natural destas doenças. Neste momento, o papel do pediatra é fundamental, pois é este profissional o grande receptor destes pacientes e necessita se manter alerta para os sinais e sintomas clínicos que permitem o diagnóstico precoce. Estratégias para facilitar o diagnóstico laboratorial encontram-se disponíveis.
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